“Eu continuo a ser uma coisa só: um palhaço, o que me coloca num nível mais elevado do que o de qualquer político.” Charlie Chaplin

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sem amor o mundo seria lindo

Por: Gilberto Bernardi Jr.


Falta realidade em tudo. Um sentimento de fácil comoção, de difícil aperfeiçoamento e com o lado positivo completamente esquizofrênico.



          É da natureza do ser humano nascer puro e desprovido de inteligência. Todo mundo cresce recebendo informações diversas e vai criando a própria visão de mundo. São acontecimentos gerados pela própria vida que colocam os humanos numa posição de defesa ou ataque, mas acima de tudo, todos criam uma estratégia e um conhecimento que resulta quase sempre num pensamento real de como as pessoas são. Claro que há a possibilidade de discernimento sobre fatos, entretanto, são os próprios fatos que resultam em idéias negativistas a respeito dos próprios seres humanos.
          O que falta para as crianças, por exemplo, é a realidade nua e crua desde os primórdios. A lógica de narrar contos de fadas e ensinar-lhes que há um mundo perfeito é a maior e mais cruel mentira contada pelos pais que, num momento de proteção, cometem a fraude e burlam o imaginário - o problema é a fantasia.
          Esse modernismo intuitivo vive a todo instante um colapso sentimental e digital e, a culpa, volta-se à indefinição do amor. O que move todos os acontecimentos mundiais é o amor. Até que as pessoas possuem um acordo de não envolver o sentimento, tudo caminha numa lógica incondicionalmente completa: guerras não acontecem, a ciência e a religião não entram em conflito, Deus fica calmo, o Diabo deixa até de nos tentar, o índice de suicídios diminui, menos alcoólatras, menos usuários de drogas, músicas com letras de qualidade e, claro, pessoas sem sofrimento.
          A prova de que o amor é um abuso contra o eu interior é um fato consumado. E por mais que possa doer para nós, a culpa provém dos nossos pais, que nos ensinaram a ter amor. Vejamos: nos ensinam a gostar do próximo, mas é gostando do próximo que levamos uma punhalada pelas costas; nos ensinam que todo o ser humano é humilde, mas a vida te mostra que humildade não existe; te contam que dinheiro não é tudo, mas se você não tem dinheiro na vida, você é um nada; te ensinam a gostar das pessoas, a dedicar-se a elas, a demonstrar sentimento, mas no momento que segue o ensinamento, a vida te mostra que a fantasia não existe e no mesmo momento ela te cospe na cara, te agride e o que é pior, te mostra o quanto você é um otário por acreditar em príncipes e princesas impregnados apenas em páginas de livrinhos abstratos.
          No mínimo acontece uma submissão contra o irreal e, é normal. Chega a ser um hábito ficarmos arrasados e nostálgico após a nossa taxa de otáriedade atingir o nível máximo. Por isso que nunca devemos nos doar às pessoas que supostamente amamos, pois são estas que vão te decepcionar na próxima cena da vida. Para as pessoas que demonstramos nosso sentimento, são as prováveis criminosas futuras, que irão sem dó, te marcar com um ferro quente – são estas que contribuem, como os pais, para considerarmos o amor o pior entre os piores do universo. Está aí a prova de que falta para as crianças mais realidade e menos ilusão.
          É necessário contar histórias para os infantis, mas que sejam narrativas reais. Mostrar que as pessoas são cruéis e sem senso comum é pertinente. Não é mentindo para as crianças que comendo espinafre, os braços delas ficarão fortes como os do personagem do desenho Popeye. Quando um pai ou mãe produzem uma mentira direta, estão construindo um monstro natural, não um filho sensível e fantástico.
          Precisamos diminuir a poesia, os poemas e o romantismo. Essas fórmulas apresentadas até hoje pela lógica sentimental só produziram bestas com amor e sem caráter. Sem contar que o caráter é uma criação manipulável por pessoas que estão apaixonadas. A comprovação científica disso são as atitudes imorais que o ser humano, ao estar num momento de transe devido ao amor, faz pela pessoa amada. O ser humano ao estar sentindo amor pelo próximo, perde totalmente a lógica. Começa a pensar com o coração – e aí perde tudo, se deixa levar pelo amor, e comete a grande gafe de ludibriar o próprio caráter.
          Se a literatura fosse menos lírica e o amor mais real e palpável, hoje estaríamos, com certeza, vivendo num mundo melhor. Estaríamos convivendo com pessoas agradáveis, frias, e com o real espírito de caráter. Sem amor, o mundo seria literalmente lindo.

sábado, 30 de julho de 2011

A ópera da morte

Por: Gilberto Bernardi Jr.


Quando me deparei com a morte, um concerto formado por anjos e demônios começou a tocar a melodia mais malévola de todos os tempos. Senti nos olhos a acidez de um limão. Nas minhas veias agulhas injetavam as cifras da morte em minha corrente sanguínea. Meu corpo pressentiu a dor em sangue do infarto que atingiu o meu pai. Quatro anos se passaram e a ópera da morte cultua os meus sonhos mais intrigantes. Julho resplandece a cada ano o aniversário que eu nunca gostaria de comemorar, o da morte do meu pai.


          Lembro como se fosse hoje. Uma segunda-feira gelada eu era acordado por minha mãe, no penúltimo dia do mês de julho, no ano de 2007, por volta das seis primeiras badaladas do dia. Assustada, com os olhos arregalados e com uma feição no rosto de que algo iria mudar o transcorrer da família, minha mãe me chamou – “Giu, levanta que teu pai está mal”.
          Meu quarto estava com a luz apagada. Naquela noite eu não tinha sonhado com nada e acordei da mesma forma como deitei. A cama estava intacta. As cobertas não tinham caído e os lençóis ainda estavam ajeitados. Meu corpo não se mexeu um milímetro naquela madrugada. De domingo para segunda-feira meu sono foi leve. Foi a primeira vez, dentro de dois anos que minha cabeça ficou vazia e não antecedeu-me fato algum. Parecia que a mediunidade tinha me abandonado. Engano meu.
          Num pulo eu estava em pé. Já sabia, com os pés quentes no chão gelado, de tudo o que eu tinha que fazer naquele instante que marcaria minha vida para sempre. A passos largos dei a volta na cama, acendi a luz e corri para o banheiro. A porta trancada amenizava o barulho dos pingos que caiam do chuveiro e dos últimos suspiros do homem que virou mito para mim, apenas para mim.
          Minha mãe ficou intacta olhando minha reação. Com a franja dos cabelos em cima dos olhos, parecia que ela sabia tudo o que estava acontecendo, mas não queria acreditar. Ao levantar o braço direito ela passou a mão no rosto, deixando a face limpa. Pude olhar no fundo de seus olhos a cena que eu teria que encontrar dentro de alguns segundos adiante. O que separava meu pai de meus braços era uma porta branca.
          De frente para o banheiro, bati levemente com a mão esquerda na porta e com a voz firme com um ar de descontrole comecei a chamar: “Pai... pai... paie. Paieeeeee”. Ele insistia em não responder. Virei com a cabeça para traz, minha mãe estava atônita. Sai correndo casa a fora. A ideia seria pular a janela do banheiro.
          Fora de casa, com apenas uma camiseta de manga longa, meu rosto sentia o vento gélido daquele mês de julho. O céu azul refletia uma felicidade inexistente e, as nuvens não tinham desenho algum. Eu já tinha pulado varias vezes aquela janela, meus pais geralmente levavam a chave de casa quando saiam e eu nunca tinha cópia. O que me restava era entrar por ali. Era fácil. Pular com as mão para cima, agarrar no vão da parede e puxar o próprio corpo até o lugar das mãos. Com calma, olhei para cima, calculei o pulo e nada. Não tive forças. Eu pensava comigo mesmo. “Meu Deus, é fácil, vamos Giu, pula”. Aquela calçada de lajotas escuras pareciam ter pregos que penetravam na sola dos meus pés, perfurando as camadas de coro, os músculos, os nervos e até os ossos. Por um instante senti a dor de Cristo pregado na cruz. Tentei mais duas vezes e voltei correndo para dentro de casa.
          O som dos meus pés tocando o assoalho despertou os seres superiores. Senti uma vibração, um arrepio pelo corpo. A sensação era de agulhas cutucando minhas veias. Cerrei os punhos com toda força que tive e por milésimos de segundos um ar soprou no meu ouvido me indicando a direção da porta do banheiro.
          Minha mãe estava no meio da sala agoniada e assistiu, como o mesmos olhos que minutos depois iriam se encher de lágrimas, eu passar por ela como um raio que cai do céu e sem piedade explode onde pega.
          Visualizei a porta e me joguei com os dois pés contra ela. Não lembro se eu respirei nesse momento, só tenho certeza que não senti dor física alguma. Com a porta do banheiro escancarada no meio do caminho, eu só pensava. “Aguenta, pai, aguenta”. Coloque a porta no lugar, abri o box, fechei a torneira do chuveiro. Duas voltas foram suficientes. O dia 30 de julho e o pesadelo da minha infância tinham dado boas vindas, mas eu não estava pronto. Olhei para o meu pai e gritei para a minha mãe: “Chama ajuda manhe, chama ajuda. Rápido”.
          Aos prantos e gritando loucamente por socorro, a ira dos demônios acabara de aflorar. Uma cortina de sangue e desespero se abriu em minha mente quando eu escutava a vóz da minha mãe implorando por ajuda.
          Olhando meu pai caído no chão do banheiro, engoli a minha saliva a seco e me sentei na frente dele. Comecei a dar tapas na cara do meu pai falando. “Pai, acorda. Levanta, vamos. Vamos, levanta. Aguenta mais um pouco, pai, vamos lá, não me abandona agora”. Nesse momento os demônios riam da minha cara e os anjos não me ajudavam. Até que soltei um grito arrozinte com o intuito de espantar para longe dali os demônios, os anjos e até mesmo a morte. “Não me abandona agora pai. Acorda!”. Pensei que tinha dado certo, meu pai lentamente abriu os olhos. O chuveiro deixou cair um pingo de água, que escorreu por toda minha coluna. Parecia uma lamina cortando cada vertebra. Todos sumiram do local, menos meu pai, eu e a morte que, apenas tinha adormecido para dar a punhalada final. Pelas costas senti a morte inabalavelmente atravessar meu corpo através de minhas costelas e atingir o coração do meu pai.
          Com os olhos abertos e a boca tentando sugar as últimas doses de ar desse mundo, meu pai olhou fixamente para mim de um jeito inexplicavelmente sem vida e falou as últimas palavras através do silêncio. “Chegou a minha hora, eu preciso ir”. Minha alma estarreceu. Os demônios se afastaram e uma legião de anjos tinha acabado de chegar para leva-lo. Os seres de luz cortaram o cordão de prata e meu pai foi fechando os olhos para sempre. Meu corpo sagrava de dor e eu enfrentei todos os demônios, nenhum se atreveu a me encarar por que nos meus braços, meu pai estava morto.
          A água que escorria pelo corpo do meu pai e era sugado pelo ralo, levava para o esgoto toda minha vida. A ópera da morte estava iniciando.


Continua...